Projeto de lei na Câmara quer permitir a caça de animais silvestres em reservas ambientais
Pesquisadores e ambientalistas tentam mudar a proposta. Se aprovada, embora regularize a caça de subsistência, o PL traria a sombra da caçada predatória, historicamente combatida na Amazônia
Pronto para ser votado na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (CMADS) da Câmara dos Deputados, o projeto de lei que libera a caça de animais silvestres no país (6268/16) mobiliza pesquisadores e ambientalistas que tentam influenciar na reconstrução da proposta. Embora regularize a caça de subsistência, o PL traria a sombra da caçada predatória, historicamente combatida na Amazônia.
O projeto de lei que tramita desde 2016 é de autoria do deputado federal Valdir Colatto (MDB-SC), que aceitou o convite para assumir o comando do Serviço Brasileiro de Florestas, um parlamentar conhecido por sua atuação ativa na bancada ruralista, da qual foi presidente por duas vezes.
Em seu parecer apresentado em dezembro de 2018, o relator do projeto, deputado Nilto Tatto (PT-SP), citou a Carta Encíclica Laudato Si’ do Santo Padre Francisco – o Papa Francisco – para sustentar o argumento pela rejeição da proposta, à qual classifica como inconstitucional e carente de referências éticas.
“Entretanto, não basta pensar nas diferentes espécies apenas como eventuais ‘recursos’ exploráveis, esquecendo que possuem um valor em si mesmas. Anualmente, desaparecem milhares de espécies vegetais e animais, que já não poderemos conhecer, que os nossos filhos não poderão ver, perdidas para sempre. A grande maioria delas extingue-se por razões que têm a ver com alguma atividade humana. Por nossa causa, milhares de espécies já não darão glória a Deus com a sua existência, nem poderão comunicar-nos a sua própria mensagem. Não temos direito de o fazer”, diz o trecho da Encíclica utilizado no texto.
O projeto dispõe sobre a Política Nacional de Fauna de forma abrangente, o que levou Colatto a retroagir na tentativa de sua aprovação diante das críticas de que estaria atuando em benefício da caça esportiva de animais silvestres.
“Isso é um discurso ideológico. Nós temos problemas com javalis, temos jacarés matando gente na Amazônia, temos mais de 50 casos de pessoas atacadas por jacarés e não há nenhum controle disso. É isso que nós estamos falando [no projeto]: o controle dos animais que estão causando problemas econômicos, sociais e de saúde para a população, só isso”, declarou ao tomar posse.
A proposta permitiria a caça em unidades de conservação ambiental – que representam 28% do território do Amazonas, entre áreas federais e estaduais –, retiraria o porte de armas de fiscais do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e, ao mesmo tempo, flexibilizaria a posse para proprietários rurais.
O texto também propõe liberar o abate de animal considerado nocivo às atividades agropecuárias, mediante apresentação de laudo pelo órgão competente, e a comercialização de espécies silvestres. Permitiria, ainda, que zoológicos vendam animais a criadouros particulares.
Proposta é contestada
O projeto que regulamenta a caça no Brasil foi debatido em audiências públicas na Câmara dos Deputados, em São Paulo e Florianópolis, marcadas pela ausência do autor da proposta. ICMBio, Ibama, Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e Ministério Público de São Paulo (MPSP), entre outros órgãos, além de organizações ambientalistas, são entidades e órgãos que se manifestaram contra o projeto.
Juntamente com outras propostas que tramitam no Congresso (PL 966/15, PLP 436/14, PDC 427/16), a nova política de fauna pode trazer impactos diversos para o Meio Ambiente brasileiro. De acordo com o diretor da WCS no Brasil, Carlos Durigan, o debate é fundamental para as políticas públicas voltadas para a Amazônia e as áreas protegidas, mas precisa ocorrer de forma abrangente.
“Existe uma rede de articulação entre pesquisadores, agências governamentais, ONG’s e lideranças comunitárias que têm debatido o tema da caça de subsistência, por exemplo. O processo de construção do PL tem sido um debate pouco participativo. Devido à importância do tema, este processo demanda um debate profundo e amplo envolvendo diversos segmentos da sociedade”, explica Durigan.
Pressão sobre espécies
A caça esportiva ou de lazer é uma das preocupações para os ambientalistas, já que poderia intensificar a pressão sobre espécies ameaçadas. “A caça sem manejo e a destruição de habitats são as principais causas que ameaçam a sobrevivência das espécies animais, assim flexibilizar a legislação nos dias atuais sem um debate intenso e sem a construção de mecanismos efetivos de controle da atividade pode sim aumentar os riscos para a sobrevivência de muitas espécies de nossa fauna”, diz Carlos Durigan.
Já a caça de subsistência é um ponto de interesse efetivo de quem trabalha na Amazônia e é tema de debates em diversos eixos estratégicos de políticas ambientais. A Fundação Vitória Amazônica (FVA) monitora há dez anos a prática da caça de subsistência, no contexto do uso de recursos naturais, pelas comunidades da bacia do rio Unini.
“Os que nossos revelam que as comunidades respeitam as áreas, caçam espécies específicas em determinados períodos do ano, mas não dependem apenas dessa fonte para a alimentação, já que também pescam ou cultivam, por exemplo”, explica Marcelo Brasca, da FVA.
23 milhões abatidos em 65 anos
Proibida desde os anos 1960 no Brasil, a caça de animais silvestres era intensa na Amazônia no início do século XX, período chamado de “época da fantasia” em muitas partes da Amazônia. “Fantasia” eram os nomes dados as peles de felinos exportadas para o mercado da moda norte-americano e europeu.
Só a venda de pele das espécies mais exploradas – que incluíam onças, jacarés, peixes-boi, veados, porcos-do-mato, capivaras e ariranhas – movimentou cerca de US$ 500 milhões (em valores atuais) durante o auge desse comércio. De 1904 a 1969, algo em torno de 23 milhões de animais silvestres de ao menos 20 espécies foram mortos para suprir o consumo de couros e peles.
Maior felino das Américas, 183 mil onças-pintadas foram mortas apenas em 1969, dois anos após a proibição da caça no País. No mesmo período, os caçadores abateram 804 mil jaguatiricas e gatos-maracajá. Esses dados foram apresentados em um artigo publicado em outubro na revista Science Advances e referem-se apenas ao que ocorreu nos estados de Rondônia, Acre, Roraima e Amazonas, no período citado.
O biólogo André Antunes coletou as informações nos registros comerciais e portuários – disponíveis em bibliotecas e arquivos públicos – durante o doutorado no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em colaboração pesquisadores do Brasil, da Nova Zelândia, da Inglaterra e dos Estados Unidos, para reconstituir a história do comércio de peles na Amazônia ocidental durante boa parte do século XX.