Fracasso de tentativa de golpe de Estado revela força política do presidente da Bolívia
A demissão do comandante do Exército boliviano, Juan José Zúñiga, após uma série de ameaças contra o ex-presidente Evo Morales, foi o estopim para uma tentativa fracassada de golpe de Estado, que durou poucas horas e terminou com o militar preso. Mas acabou revelando a força política do presidente Luis Arce — ex-aliado de Morales e agora seu maior rival dentro do Movimento ao Socialismo (MAS).
Na segunda-feira (24), Zúñiga fez ataques contundentes contra Morales durante uma entrevista na TV, quando disse que o líder do MAS “não poderia mais ser presidente deste país” — Evo já anunciou que será candidato ao pleito do ano que vem; Arce, por sua vez, vem mostrando a intenção de tentar a reeleição.
Mas se Morales e Zúñiga são inimigos de longa data — o ex-presidente, inclusive, chegou a dizer ter vídeos e áudios que comprovam que o comandante quer eliminá-lo —, Morales e Arce já foram aliados, embora hoje disputem protagonismo dentro da maior legenda do país. Talvez por isso, Zúñiga não esperasse uma resposta tão contundente de Arce às suas críticas na TV. Nem que acabaria sendo destituído.
“Houve uma intromissão política do comandante das Forças Armadas. Arce poderia ter se valido disso para desgastar Morales, seu maior adversário político hoje, mas adotou uma posição institucional e demitiu Zuñiga”, explicou Clayton Cunha Filho, doutor em Ciência Política e professor da Universidade Federal do Ceará.
O presidente boliviano, Luis Arce, denunciou na quarta-feira a reunião não autorizada de soldados e tanques em frente aos edifícios do governo na capital La Paz, dizendo que “a democracia deve ser respeitada.”
Racha interno
Fora do cargo, Zúñiga tentou dar sua cartada final e enviou tropas para a principal praça de La Paz, cercando o palácio presidencial. Arce não se rendeu. Enquanto um grupo de apoiadores bradava “Lucho (seu apelido), você não está sozinho”, o presidente resistiu à tentativa de golpe e nomeou um novo comando militar.
Ao assumir, o general José Wilson Sánchez Velázquez ordenou o regresso das tropas aos quartéis, que se desmobilizaram prontamente. As imagens do presidente confrontando diretamente Zuñiga ganharam as redes sociais. A tentativa de golpe foi condenada por todo o espectro político boliviano e por grande parte da comunidade internacional.
“As ações políticas do presidente o posicionam fortemente na sua competição com Evo antes das eleições presidenciais de 2025. Temos que ver como o duro confronto entre os dois continua agora. Mas como dizia Winston Churchill [ex-primeiro-ministro do Reino Unido], ‘nunca desperdice uma crise’”, afirmou Daniel Zovatto, analista sênior do Centro de Estudos Internacionais da Universidade Católica do Chile.
O MAS, legenda criada por Morales, governa a Bolívia há mais de 15 anos — sem contar o breve governo de Jeanine Añez, que assumiu após a renúncia do ex-presidente, em novembro de 2019, alegando um golpe. Fora do país, Morales indicou seu ex-ministro da Economia como candidato pelo partido.
Arce venceu as eleições mas, desde então, Morales vem acusando o antigo aliado de ter se movido para a direita. O racha entre os dois políticos é hoje a principal fraqueza do governo: como a legenda está dividida, perdeu a maioria que tinha na Câmara e no Senado e o presidente tem trabalho para aprovar leis, explica Cunha Filho.
Nos últimos meses, Morales vinha atirando para todos os lados para tentar desgastar o governo, mas a economia, embora não tão pujante quanto nos tempos em que ele era presidente e as reservas de gás eram abundantes, continua crescendo: o país teve um crescimento do PIB de 3% e a inflação está estável, entre 2% e 3% desde 2023.
Popularidade estável
Arce também mantém certa popularidade, diante de uma oposição pulverizada — tanto Fernando Camacho, principal governador da oposição, quanto a ex-presidente Áñez, ambos presos, condenaram ontem a tentativa de golpe.
“Primeiro, a tentativa de golpe desmantela um pouco a narrativa de Morales de que há um grande complô contra ele, na medida que foi o próprio Arce quem correu o risco. Em segundo lugar, o presidente sai fortalecido por sua postura legalista, já que ele demitiu Zuñiga por atacar Morales, que era seu adversário nesse processo, e sofreu as consequências diretamente. Se algum eleitor dentro do MAS estiver balançado entre os dois, agora pode passar a apoiá-lo dentro dessa disputa interna”, conclui Cunha Filho, grande estudioso da política boliviana e autor de “Formação do Estado e Horizonte Plurinacional na Bolívia”, de 2018.
Por Redação